Uma passagem pela saúde pública

Uma passagem pela saúde pública

28 de janeiro de 2020 1 Por Marco

Em uma época em que se discute causas sociais, direitos, deveres, esquerda e direita com a mesma polaridade e calor com que se discute futebol ou religião, tive uma experiência com a saúde pública, decorrente de um AVC que meu pai sofreu em janeiro do ano passado, que gostaria de registrar e compartilhar com vocês.

Primeiro, é importante dizer que meu pai está bem, sem grandes sequelas, foi uma longa jornada e ele já está quase retornando aos seus 100%. Também quero deixar claro que o meu objetivo com esse relato não é gerar um debate político, apenas uma reflexão sobre os problemas do sistema de saúde e da sociedade de forma geral, que começo a perceber que estão divididos em várias camadas.

Tudo começou no dia 23/01/2019, quando meu pai começou a apresentar dificuldade na fala, na escrita e sentir muita dor de cabeça. Ele foi levado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Santa Catarina, zona sul de SP. Chegando lá passou por uma série de exames e foi mantido em observação até o dia seguinte, quanto começou a tortura para ele e minha família.

Da parte do meu pai, ele passou a noite sentado em um corredor na porta de uma sala cheia de pacientes, sem poder ser acompanhado (apesar de ter mais de 60 anos), ainda com dor e sem entender o que estava acontecendo. Da nossa parte, passamos a noite na porta da UPA, sem saber o diagnóstico certo, sem ter informação do que fazer, ou para onde ir, com a angústia de saber que ele estava sozinho e apenas os comentários de alguns enfermeiros e médicos de que ele poderia ser liberado a qualquer instante. No dia seguinte, recebemos diversas informações contraditórias dos médicos e recepcionistas do lugar, disseram que estavam esperando uma vaga pra realizar um exame em outro hospital, que estavam esperando uma vaga no tal hospital pra internação, que estavam esperando uma ambulância pro transporte e até que só faltava um médico especialista pra assinar a alta dele… e a cada informação dessa, eu entrava em desespero e procurava uma solução alternativa, seja pagar uma internação particular pra ele ter esse diagnóstico e ir pra casa, seja pesquisar uma ambulância privada, seja chamar um médico pra ir até a UPA e assinar essa alta… mesmo sem ter idéia de onde tiraria o dinheiro pra arcar com essas possibilidades desesperadas.

Ao final do segundo dia, finalmente ele foi transferido para o Hospital Municipal Doutor Arthur Ribeiro de Saboya, também na zona sul, lá foi colocado em um quarto da emergência, onde permaneceu por vários dias e eu pude observar a calamidade da saúde pública bem de perto.

No primeiro dia da chegada do meu pai, ele foi deixado em uma maca no corredor na entrada da emergência e enquanto aguardava atendimento médico, testemunhou a morte de outro paciente da emergência ao seu lado e tivemos que deixá-lo sozinho, pois não eram permitidos acompanhantes (de novo, apesar de ter mais de 60 anos) e lá, passou a noite, até ser transferido para um quarto de 4m² junto com outros 5 pacientes em situações diversas, das mais graves até as mais estáveis, todos deitados em macas. E aí sim, conseguimos acompanhá-lo, uma pessoa por vez, sentados em uma daquelas cadeiras de madeira (tipo de escola, sabe?). Não haviam divisórias entre os pacientes e o mais grave: ainda não tínhamos informações.

Quarto da Emergência

Já sabíamos que meu pai tivera um AVC, mas não sabíamos causa, tratamento, previsão de alta e durante todo o dia, não conseguimos falar com o médico responsável… ouvimos que o médico estaria em uma cirurgia, ouvimos várias vezes que ele falava com os responsáveis pelos pacientes um por vez e que ele estava chegando, ouvimos que ele estava cheio de atendimentos, porém no final da noite, depois de mais de 24 horas lá, ouvi de uma enfermeira a resposta que fez mais sentido: “Hoje é feriado, o doutor não veio, deve passar amanhã“. Era dia 25/01, aniversário de São Paulo.

Sem informações, só com cansaço, depois de estar como acompanhante há mais de 8 horas, sem poder sair pra comer ou ir ao banheiro (não havia banheiro para acompanhante), aguentei o quanto pude e tive nessa primeira noite no hospital Saboya, uma das experiências mais bizarras que testemunhei na vida…

No meio da noite, talvez por ser feriado e a equipe de funcionários reduzida, vi as enfermeiras gritando uma com a outra por conta de escala de trabalho, vi uma enfermeira ligando a música alta no celular durante toda a noite e vi a mesma enfermeira usando um aquecedor de água médico dentro do quarto pra passar café pra equipe. Algumas observações sobre isso:

  1. No quarto haviam pacientes graves, que precisavam de descanso e silêncio.
  2. Nenhum dos pacientes podia tomar café e olha que meu pai adora café, depois de 3 dias internado, imagina a tortura de se sentir cheiro de café fresco a 30cm de distância.
  3. A música era bem eclética e tocou desde música clássica e antigas músicas românticas internacionais, até sertanejo, axé e funk… o que seria muito legal, se não fosse pelo ponto 1, os pacientes precisavam de descanso e silêncio.
  4. Tenho fotos e vídeos que fiz de alguns desses momentos, mas obviamente não vou postar aqui pra não expor ninguém.

Ao final desse meu “turno”, fui pra casa desolado com tudo isso que tinha testemunhado e andando pelos corredores vi diversos pacientes que estavam ainda piores que meu pai, não só pela situação de saúde, mas porquê estavam deitados em macas, no meio dos corredores, na maioria dos casos sozinhos… gemendo… passei no banheiro antes de ir pra casa, não havia papel higiênico, nem sabão no banheiro que ficava na entrada do hospital, fora que existiam pixações, coisas quebradas e sem sinais de limpeza.

No dia seguinte, ainda não conseguimos falar com o médico, que teria passado pra ver meu pai apenas no meio da madrugada e em meio a expectativa de “a alta pode vir a qualquer instante“, tive um momento que foi um soco no estômago… pela simplicidade e pela tristeza.
Meu pai estava com o mesmo lençol da maca há dois dias, ficando incomodado que não haviam lençóis limpos pra trocar e além disso, achando que iria logo pra casa, estava segurando pra tomar banho em casa. Porém ao ver que essa esperança de alta estava se esvaindo, ao final daquele dia, ele se entregou e resolveu tomar um banho e pediu uma toalha. A enfermeira então disse que não havia toalhas e que era pra se secar com o lençol, entregando um lençol limpo pra isso. Espertamente, meu pai usou o lençol que ele estava deitado pra se secar e deixou o lençol limpo pra deitar na cama… meu pai ficou feliz e deu um sorriso pela primeira vez em dias, pois conseguiu um lençol limpo pra deitar.

Os dias foram passando, íamos revezando pra fazer compania pro meu pai, que aos poucos foi sentindo menos dor, tivemos que comprar o remédio que tinha sido receitado, pois não havia mais no estoque no hospital, vivenciamos diversas brigas aos gritos de funcionários, era comum pacientes da emergência psiquiátrica invadindo o quarto e fazendo a maior bagunça, um ambiente cheio de tensão e tristeza. E em meio a tudo isso, cheguei a ver até algumas pessoas que fingiam estar doentes para poder receber o lanche que eles forneciam para os pacientes.

Foram cerca de 10 dias que meu pai passou deitado em uma maca, com pouquíssimas informações, supostamente aguardando um exame que só poderia ser realizado em outro hospital. Após esse período, ele finalmente foi transferido para o setor de internação mesmo, onde tinham quartos um pouco mais limpos, iluminação natural e menos pacientes por quarto. Nessa ala, que parecia ser outro hospital, meu pai finalmente teve a chance de deitar em uma cama hospitalar e se despedir da maca que foi sua residência em tempo integral por quase duas semanas. Nessa parte do hospital, não havia pacientes deitados no corredor e a aparência era menos degradante, apesar de um dia termos testemunhado outro paciente que se defecou e devido a demora para que fosse limpo (e não foram poucos avisos), o cheiro forte se espalhou por todo o andar do hospital.

Teve ainda a passagem em que a enfermeira entendeu errado a receita do médico, que dizia para aplicar insulina caso o resultado de um exame rápido desse um valor acima de um número X, e mesmo o exame do pai dando um resultado muito abaixo desse valor, ela ia aplicar insulina e apenas desistiu depois de eu insistir pra ela confirmar com o médico.

Aguardamos todo esse período, ainda com pouca informação, vários momentos de tensão, fora as nossas brigas com funcionários pra conseguir ver meu pai, pois os acessos eram controladíssimos, até que finalmente ele conseguiu ser transferido para outro hospital para fazer o exame e então recebeu a tão aguardada alta.

Ao todo, meu pai ficou quase um mês internado e não nego que apesar das demoras para realização dos exames, ele teve tudo o que precisava para o diagnóstico e saiu do hospital com um tratamento receitado e sou grato por isso, mas foi tudo um processo extremamente desgastante pra ele e pra nós, por isso fico indignado.

Isso tudo me levou a pensar em uma coisa, nesse relato estou falando de um hospital grande localizado em uma das maiores cidades do país, como será em cidades do interior? Cidades mais pobres? E aqueles vilarejos mais afastados que dependem do Mais Médicos?

E como eu disse lá no começo, isso tudo deixou claro pra mim que o problema da saúde, de modo parecido com a educação e outras tantas áreas do nosso país, quiçá do mundo, está espalhado em diversas camadas. Desde o político que desvia dinheiro de materiais de limpeza para usar em campanha em ano eleitoral (sim, tenho relatos de pessoas próximas que vivenciaram isso em São Paulo), passando por funcionários e médicos mal treinados e sem empatia pra se preocupar com simplesmente informar um paciente e sua família, atrasos de salários dos servidores, má administração das instituições, pessoas que não respeitam espaço público o sujando e depredando, até situações mais endêmicas, como a fome e a miséria que obriga uma pessoa a fingir que está doente pra comer um lanche de graça no hospital. São tantos problemas e parece que se pararmos pra analisar, a maioria deles começa em nós, pessoas, a sociedade como um todo.

Só pra concluir o caso do meu pai, após isso tudo, fomos atrás de um plano de saúde para ele, descobrimos que esse também é um assunto bem complicado, que envolve uma série de vícios sociais e financeiros, mas isso é assunto pra outro post.

E você, já passou por algo parecido?
Conta a sua história pra gente! E se quiser, deixa seu comentário que podemos entrar em mais detalhes sobre esse caso e tantos outros em uma das próximas edições do QG Podcast.

Por Marco.


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